domingo, 9 de abril de 2017

SOBREVIVENDO (Mais um conto gratuito; este, de 1979)





Vai Lino, Tião ou Severino, vai. O corpo jogado prá frente, andando ao impulso do peso da enxada nas costas. Vai, é tarde. Olha... Não: "óia", que lindo menino! Chama os meninos que correm em volta junto aos cães que lhes compartilham a vida. "Olha o Sol, crianças, que lindo! Amarelo, cor de ouro, vai se pondo, pro Japão!" A roça vai bem, obrigado. Mais três dias fica pronta a arruação. Majestosa a natureza em volta. Cortante o sentir no coração. Coração? As coisas da roça, as coisas de casa. Casa? O Linim, o Tiãozim, o Severinim, o caçulim enfim, como será que tá passando? Oh! Criança. Como pode? O dois grandes tão bons, fortinhos, uma certa saúde. Tá na cara, nem se comparam com as crianças do patrão. Ô, homem danado pra criar filho forte sô! Mas os grandes são fortinhos. Não precisa muito médico não. Falar no patrão, Seu Dotôpatrão vai precisar contratar mais gente prá colheita. Só um homem e duas crianças não dá. A mulher não pode ajudar, o pequeno não deixa. Esse pequeno! Nasceu bonitinho, chorandinho, toda a vizinhança veio ver. Seu Manoel, gente boa, batizou. Assim, de repente, foi magrando, não dorme, só chora. Seu Manoel, gente boa mesmo, emprestou a carroça e ficou com os grandes pro pequeno ir no médico. Outra gente boa! Tá sempre com os bolsos do avental cheios de remédios, amostra grátis, vai soltando, vai sorrindo, distribuindo. "Vitamina, amigo, vitamina. A criança tá fraca, precisa comer". E não come? "Como não come? Gumercinda tem teta, doutor! Güentou dois, ali, ó, até três anos". Mas a verdade é que a criança nao vai, vai morer, Lino, ou vai morrer, Severino, ou vai morrer Tião, pelo jeito. Seu Manoel, gente sábia, tem livro, já falou: "Não tem leite na Gumercinda, ou Madalena, ou Bastiana, compadre. O menino tá mamando no seco". "Como não tem leite se güentou dois? Olhei, compadre Seu Manoel, olhei noutra noite mesmo". "Então, olha de manhã. Raia o dia, olha nas tetas da Gumercinda, ou Bastiana, ou Madalena". Seu Dotôpatrão não tem desse problema, né Tião? Só vem no sítio ver o resultado da colheita, plantação. Filhos com rostos corados, gordos, bonitos, brincalhões. Engraçado, não brincam com os seus, né Lino, ou Severino? Não chupam laranja, só jogam um no outro, estragando. Acabam com o pomar. Seus grandes limpam tudo depois, arriscando tétano nas garrafas quebradas. Não dão bola prás crianças que ficam olhando tanta alegria sem entender como pode o mundo parecer bom. Tratados como toco de pau na roça. Escola, vão na escola. Pergunta prá um dos seus, Severino, pr'aquele ali, que vai correndo, driblando cascavel, jararaca, coral, urutu-cruzeiro, que quando não mata aleija, pegunta que é escola. "Sei não, sei não". "Seu Dotôpatrão merece, trabalhou muito, juntou dinheiro, tem sítio. Ocasião vi as crianças dele prontas pro baile de carnaval, que lindas! Que casa!" Casa? A casa, o rancho, esperando na sombra da tarde. A bacia prá lavar o pé, a mesa de pau, os sapos saindo de baixo da casa prá chiar, prá croar, croar. Beleza a natureza! O café folhado, cheinho de frutas quase amarelas, quase. A Lua! não é que a lua vem surgindo trazendo junto as estrelas? Aqui na roça estrela é nítida, brilhante, bonita, sem luz atrapalhando. Na cidade, as crianças, no carnaval, beberam seu suor, Tião, dançaram, quem sabe, sobre seu corpo. "Noite bonita, hoje tiro a diferença". Na porta Madalena esperando, ou Bastiana esperando, ou Gumercinda esperando. Triste, com o menino que não melhora. O menino! Seu Manoel, gente velha, fala certo. "Olhei de manhã: sequinha. Como sequinha, se de noite tava cheia e o pequeno não mamou?" "É isso, compadre, é isso. O pequeno tá mamando no seco. Só pode ser o Demo que..." "Demo? Cruz-credo, Seu Manuel! Vira essa boca, sô!" "O Demo, meu filho. O Demo, o Capeta, o Coisa-Ruim, seja lá que nome tenha, tá mamando na tua mulher. Você tem que tocaiar ele. E, sem demora, é pelo teu filho". E agora, amigo; e agora? Prá bom caboclo não tem coisa mais temida que Ele, o Ele. Mas, pelo filho... pelo filho homem vira bicho brabo. Bela tarde, poucas nuvens inofensivas, não tem cara de chuva. "Mesmo se chove, hoje eu tocaio o Cão. Seu Manoel me deu as regras: dois paus de cedro em cruz, só isso resolve contra o Pé-de-Cabra. Cedro sobrou da reforma da tulha. Mas só nisso não fico não, que não sou homem de confiar muito em simpatia. Pego também a espingarda do cara da beira do rio, ele empresta". Isso Lino, isso Tião ou Severino, sentado na soleira da porta, a família recolhida e você de tocaia. A espingarda de chumbo, que explode, Tião, que explode, na mão. À espera do Terno-Preto. É tarde, a noite, os grilos, a natureza em ritmo, o sono. O sono tem que vir, a cabeça pender, dormir. De repente! Acorda, caboclo, ao peso de um peso na perna estendida! O que é? Olha prá cima, tremendo, esperando encontrar-se com a cara do Cão: nada! Olha prá baixo... meu Deus! Você queria ser cego nesta hora, né, Lino? Já viu bicho maior que este? Cascavel, jararaca, sei lá. Dois metros? Por aí. Você de perna estendida imóvel no umbral: é feitiço, Severino, do tinhoso. A cobra nojenta se arrasta livre e sozinha pro quarto. Segue-a Tião, ou segue-a Severino, ou droga, segue-a Lino. A pegajosa adentra o quarto como quem sabe, e começa a escalar o caixão que serve de perna de cama. Enfia-se a comprida pela combinação da Bastiana, ou Gumercinda, ou Madalena. A pobre da velha, vai ver que encantada pelo bicho, já vira. O basbaque do homem plantado na porta assiste ao que nunca quis ou pensou assistir. Veja, Tião, ela procura os peitos! E mama, Severino, primeiro num, depois noutro, Lino. Que fazer, se qualquer ação pode assustar a úmida, e assustada envenenar a encantada? A maldita, saciada, retorna pelo mesmo caminho, gosmando ousadamente seu pé, cabra danado! E a coragem, amigo, e a coragem, irmão? Você imóvel vendo a bicha arrastar-se prá fora, impune: é feitiço. O cedro impotente. Lembra, Lino, da simpatia do crente! Lembra! Como é mesmo? "Sangue de Jesuis!" Isto, grita isso! Grita! E a imobilidade se desfaz ainda a tempo de alcançar com uma carga de chumbo a excomungada na soleira da porta. Acordam mulher, filhos, vizinhos, cães, cavalo, sapos e galinhas, a ponto de verem a capeta da cobra se torcendo, se morrendo. "Taí, mulher, taí compadre, agora o pequeno vai tê o que mamá".




Este conto foi publicado pela primeira vez na antologia "Os Desconhecidos", da Editora Beija-Flor, Curitiba, 1979)

Nenhum comentário: