quarta-feira, 28 de julho de 2010

RELAXE... E IDOSE!

Tendo visto tantos velhos bons, amorosos, pacientes, cavalheiros e altruístas, chego a acreditar que os que culpam a idade pela perda dessas qualidades na verdade nunca as tiveram.
Já posso pensar livremente essas coisas, pois, segundo nossa exuberante legislação, sou um idoso.
Confesso que resisti. De acordo com o famigerado estatuto que nos discrimina (mais um saboroso fruto da inépcia e desídia de nossos legisladores) completei meu primeiro trimestre de idosidade.
Três meses olhando as melhores vagas no estacionamento do supermercado e resistindo aos apelos do netinho que me acompanhava ("Vô, pára ali, você já é idoso!"). Até que um dia parei... apenas para sair novamente correndo de medo de uma enorme placa que me ameaçava de multa, pela lei tal e tal (mais lei?) se eu não tivesse um tal papel que a prefeitura fornece. Descobri que eu era um idoso descadastrado!
Fui atrás do cadastro, e vi o custo de nossa incivilização.
Não poderiam, simplesmente, criar as vagas para idosos e deficientes, todos respeitarem e a coisa funcionar?
Não. Ninguém pensa em investir na educação, que geraria a civilização, o respeito ao próximo e, consequentemente, às vagas do próximo um pouco dissemelhante.
Não poderiam, então, ao menos aceitar que o idoso colocasse no painel do carro uma xerocópia da carteira de identidade, evitando que o agente desavisado o multasse?
Não. Quem não investiu em educação, também se julga exime de investir em segurança, e o idoso, como qualquer pessoa, tem medo de expor seus dados pessoais a desconhecidos em lugar público.
Então, ao cadastro! Uma prévia pela internet -- custo do erário em informática. Uma ida ao local da entrega da "credencial de idoso" -- custo em combustível e estacionamento. Três rapazes solícitos atendendo -- custo do erário em mão-de-obra (é bom que eles estejam empregados, mas, poderiam estar em atividade mais produtiva e à custa do empresário). Registro e impressos -- mais custo do erário em informática e papel.
Finalmente, um idoso cadastrado. Espero não "engolir o rei", como fazem alguns, e sair por aí gritando meus direito em filas, atropelando jovens com crianças pequenas no colo, ou obrigando deficientes cujas deficiências não são aparentes a exibí-las, a fim de que não os expulse também da fila privilegiada.
Ainda não cheguei a tanta ranzinzice. Por enquanto, me satisfaço em ficar criticando o Estado!

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O BIÓLOGO E OS DOIS GUARAS: EQUÍVOCOS DO DENUNCISMO

A prática de se suspeitar, acusar, denunciar e, na sequência e inconsequentemente, julgar e condenar ao escrachamento público na imprensa está tão comum neste país que achei muito útil reproduzir esta carta de um cientista brasileiro.


KAFKA + FOGO "AMIGO" = ZOOLOGIA NO FUNDO DO POÇO

Alexandre Aleixo
Curador da Coleção de Ornitologia
Museu Paraense Emílio Goeldi
Belém – Pará



O escritor tcheco Franz Kafka, autor de jóias da literatura como “A Metamorfose” e “O Processo”, tinha um talento especial para narrar como o insólito pode entrar na vida das pessoas sem qualquer aviso prévio e com conseqüências trágicas. A odisséia kafkiana do biólogo Louri Klemann Jr. começou no dia 15 de maio deste ano no litoral do Paraná, mas seu fim ainda parece longe, com um possível desfecho que pode representar a total falência da Zoologia brasileira como uma ciência que se comunica eficientemente com o grande público e até com alguns de seus supostos líderes nos conselhos regionais de biologia.
O site “Google” é um medidor acurado da odisséia kafkiana de Louri Klemann Jr. Quem digitar o nome completo dele achará várias entradas logo na primeira página. Nas mais acessadas, ele aparece como um criminoso condenado sem julgamento, como Joseph K., protagonista de “O Processo”. Em outras, ele aparece como um prolífico consultor ambiental. Além disso, existe também o Louri Klemann Jr. mestrando do curso de Pós-graduação em Ecologia e Conservação da Universidade Federal do Paraná, bem como aquele que trabalhou em associação com o ICMBIO, a Secretaria de Meio Ambiente do Paraná e o Instituto Ambiental do mesmo estado (IAP) em diversos projetos que vão desde a elaboração de planos de manejo de unidades de conservação, até a revisão da lista de espécies ameaçadas do Paraná e a elaboração de planos de ação para espécies ameaçadas do estado. Curiosamente, o mesmo IAP pode condená-lo em breve a pagar uma multa de 50 milhões de reais por crime ambiental...
Tudo tão contraditório que pode parecer que existem dois Louri Klemann Jr., antípodas um do outro: o criminoso ambiental impiedoso / psicopata implícito e o biólogo conservacionista de formação, parceiro dos órgãos ambientais no estado do Paraná. Infelizmente, todas as páginas do “Google” citadas acima tratam da mesma pessoa! Surpresos?! Lembre-se, como escrevi logo no início, este texto trata de uma odisséia kafkiana. Mas vamos ao que interessa agora: quem é, afinal, Louri Klemann Jr. e por que é toda a Zoologia brasileira que está encarnando o papel de Joseph K. junto com ele num verdadeiro simulacro de processo por um crime inexistente?
A chave para entender a natureza real de Louri Klemann Jr. é o seu currículo Lattes, instrumento de avaliação acadêmica obrigatório no Brasil. Nele, estão bem caracterizados todos os Louri Klemann Jr. “do bem” das páginas do “Google”, mas que se resumem em um só: um jovem e atuante zoólogo com especialidade em ornitologia, cujos feitos não são nada modestos para alguém que começou a cursar o mestrado ainda em 2010. Como, então, apareceu o Louri Klemann Jr. bandido, criminoso ambiental no mesmo “Google”? Qual a origem deste personagem, condenado pela mídia à condição de pária sem julgamento, tal qual Joseph K. em “O Processo”?
A persona Louri Klemann Jr., como aparece caracterizada nas páginas de “A Gazeta do Paraná” nas suas edições de 27 de junho, 4 e 6 de julho de 2010, dentre os links de Louri mais acessados no “Google” nestes dias, surgiu a partir da coleta de dois espécimes de guarás (Eudocimus ruber) em Guaratuba, no litoral do estado do Paraná. Digitem “guará” no “Google” e uma das primeiras entradas sobre a ave a surgir é ilustrada por um indivíduo adulto em magnífica plumagem vermelha carmesim, típica da espécie. Dado importante, e que fará sentido apenas mais adiante: os guarás coletados por Louri em nada se parecem com a ave vermelha vistosa do “Google”, mais um dado a se juntar ao processo kafkiano enfrentado por ele.
Comuns no norte do Brasil e, principalmente por isso, ausentes da lista nacional da fauna ameaçada de extinção, no estado do Paraná os guarás eram ainda considerados ameaçados de extinção até 2009, quando especialistas credenciados pelos órgãos ambientais do estado decidiram pela retirada da espécie da condição de ameaçada, uma vez que ela voltava a se estabelecer no litoral do estado, com até cerca de 200 indivíduos avistados recentemente em Guaraqueçaba. Como essa decisão ainda não foi homologada, o guará ainda é, burocraticamente pelo menos, considerado ameaçado no Paraná.
As histórias de Louri e dos guarás do Paraná se cruzaram no dia 15 de maio deste ano, quando o biólogo se encontrava em Guaratuba desenvolvendo um projeto de pesquisa de longo prazo sobre a avifauna do Paraná, que inclui o estudo e a coleta científica de espécies de aves não ameaçadas do estado, dentre elas duas espécies de íbis, parentes bem próximos do guará e que ocorrem em maior abundância na mesma área: o tapicuru-de-cara-pelada (Phimosus infuscatus) e a caraúna-de-cara-branca (Plegadis chihi). Apesar de parentes próximos dos guarás, estas duas espécies possuem plumagem escura, bem diversa do seu parente mais famoso e tido como ameaçado. Como zoólogo profissional, Louri se encontrava em Guaratuba devidamente autorizado por todos os órgãos ambientais nacionais e estaduais competentes para estudar e, quando necessário, coletar para fins científicos exemplares, dentre várias espécies não ameaçadas de extinção, do tapicuru-de-cara-pelada e da caraúna-de-cara-branca, que nesses casos deveriam ser depositados num dos mais conhecidos museus de história natural do Brasil: o Museu de História Natural Capão do Imbuia (MHNCI), ligado à Prefeitura Municipal de Curitiba. Como todo zoólogo no Brasil, o processo para a obtenção das devidas licenças enfrentado por Louri não foi trivial e envolveu a comprovação em todos os níveis da sua qualificação como profissional, bem como da relevância e adequação da coleta para o seu projeto de pesquisa, tudo avaliado por técnicos independentes, credenciados e com legitimidade para emitir pareceres, que poderiam ser favoráveis ou desfavoráveis. Neste caso, Louri teve assegurado dentro das esferas legais por todos os órgãos ambientais competentes, o direito pleno de coletar espécimes de aves para seu projeto de pesquisa.
No dia 15 de maio de 2010, logo após coletar dois espécimes de íbis de plumagem escura durante suas atividades de campo de rotina em Guaratuba, Louri verificou tratarem-se na verdade de guarás jovens, que nessa fase na vida ainda não exibem a plumagem vermelha carmesim icônica dos adultos, mas sim, a mesma plumagem escura que caracteriza adultos das duas das espécies de íbis não ameaçadas e cuja coleta lhe haviam sido autorizada (tapicuru-de-cara-pelada e caraúna-de-cara-branca).
Pois o processo kafkiano contra Louri começou exatamente aí, com um equívoco que na verdade é previsto e tratado pela mesma legislação que o autorizou a trabalhar e coletar aves em Guaratuba como “Coleta Imprevista de Material Biológico”, e que deve ser relatada oportunamente aos órgãos ambientais que concederam a licença de coleta de material biológico.
Simples? Caso encerrado? Não, lembre-se, o processo kafkiano só está começando.
Os primeiros acusadores do “O Processo”, desta vez na sua versão paranaense, foram pessoas que acusaram Louri de leviandade, de coletar os pobres guarás supostamente ameaçados de extinção de modo consciente e deliberado. “O Processo” foi então tomando corpo e em breve eram os vários órgãos de imprensa do estado do Paraná que se juntaram ao coro de acusadores, mas desta vez omitindo da opinião pública um fato importantíssimo: legalmente, Louri não infringiu qualquer lei ambiental; pelo contrário: está e esteve amparado nela o tempo todo, mesmo tenho cometido o equívoco de ter coletado acidentalmente uma espécie oficialmente listada como ameaçada de extinção num estado brasileiro. Ademais, toda a sua história pregressa, assim como o contexto da coleta dos guarás, o inocentam, com ampla margem, de qualquer acusação de má fé e mau uso da sua licença de coleta.
O “Processo” contra Louri adquiriu o auge de um drama kafkiano quando o presidente do Conselho Regional de Biologia – 7 (CRBIO-7) veio a público engrossar o coro de algozes e declarar que, de antemão, o biólogo já poderia ser considerado errado e culpado pela coleta dos guarás, além de achar estranho o fato dos órgãos ambientais terem autorizado o mesmo a coletar espécimes da fauna. Para fechar com “chave de ouro”, a autoridade máxima do CRBIO-7, com sede em Curitba, a mesma cidade que sedia a Sociedade Brasileira de Zoologia (SBZ), proferiu seu julgamento sobre a coleta científica: desnecessária para o estudo dos animais.
Definitivamente, Louri e nós zoólogos estamos “muito bem na foto”. O presidente de um de nossos conselhos regionais mais influentes, quando vem a público se pronunciar sobre um episódio de coleta, além de declarar publicamente um colega culpado de antemão sem julgar o seu processo pelos trâmites regimentais, ignora por completo a legislação ambiental que rege a coleta científica no país, e, ainda por cima, não tem qualquer noção do papel da coleta científica para a zoologia.
E “O Processo” segue e, no seu calor, até o IAP declara a possibilidade de multar Louri em 50 milhões de reais, sem dúvida uma quantia modesta e justa, oferecida por qualquer mega-sena...
Como chegamos a esse ponto? Como, até mesmo os nossos representantes de classe ignoram por completo a legalidade e o valor da coleta científica e fornecem munição para campanhas de achaque e linchamento moral a zoólogos, ao invés de esclarecer ou pelo menos qualificar o debate junto á mídia e ao grande público? Tudo o que não precisamos nesse momento, é deste “fogo amigo”, que sepulta por completo a esperança de que a justiça vai se fazer presente e nos acordar do pesadelo desta versão moderna e brasileira de “O Processo”. Esse “fogo amigo”, no fundo, mostra que a atividade de coleta científica no Brasil chegou ao fundo do poço.
Meses atrás, ficamos todos deprimidos com o incêndio das coleções biológicas do Butantan em São Paulo e nos manifestamos das mais diversas formas, fizemos barulho sobre o que achávamos ainda ser inadequado ou insuficiente e que colocava em perigo as coleções e a zoologia no Brasil.
O drama pessoal de Louri é outra tragédia da zoologia brasileira, com uma simbologia própria: se a tragédia do Butantan envolveu a perda de milhares de exemplares coletados ao longo de várias gerações de zoólogos, a tragédia de Louri envolve a perda futura de um número desconhecido de exemplares que não serão coletados por ele e pelas novas gerações num país cada vez menos informado sobre o que é, para que serve e como é regulada legalmente a coleta científica.
Vamos, como sociedade, exigir justiça nesse caso e evitar um final kafkiano para “O Processo” de Louri Klemann Jr. Primeiramente, Louri precisa de nosso apoio para inocentá-lo de qualquer acusação de má-fé nesse episódio, como bem demonstram as condições e o contexto da coleta dos guarás em Guaratuba, além das credenciais por ele obtidas durante sua carreira profissional. Louri precisa da nossa ajuda e testemunho para se defender nos mais diversos processos que estão sendo abertos contra ele, inclusive aqueles que lhe cobram multas de valores insólitos, que devem estar lhe gerando uma angústia indescritível e com certeza o desestimulando a continuar com a atividade de coleta científica no futuro.
Além disso, temos que ativamente buscar espaço na imprensa e quaisquer foros para réplicas, esclarecimentos, retratações e ações afins, sempre que a coleta científica tiver uma cobertura parcial e sensacionalista, que contribui para repercuti-la negativamente junto à opinião pública. É inclusive uma sugestão minha instituir na Sociedade Brasileira de Zoologia (SBZ) e Sociedade Brasileira de Ornitologia (SBO), às quais sou filiado, comissões internas para esses casos, com a atribuição de avaliar cada caso e, quando oportuno, se pronunciar sempre que necessário junto à imprensa e o grande público de um modo geral. Não seria tampouco absurdo pensarmos em algum tipo de assistência jurídica permanente e de qualidade respaldando o trabalho dessas comissões.
Os personagens de Franz Kafka refletem sempre aquele que foi o drama pessoal do próprio autor: um indivíduo que, pela sua singularidade, sempre se sentiu culpado por ser diferente e aprendeu a não esperar outra coisa do mundo a não ser a rejeição gratuita associada à aniquilação. Num determinado ponto de “O Processo”, percebemos que toda a busca pelos termos e mesmo sentido da acusação sobre Joseph K. é inútil, já que o próprio protagonista começa a se sentir culpado por um crime cujo teor ele mesmo desconhece. Portanto, Joseph K. acaba aceitando a pena capital que lhe é decretada até com um certo alívio, já que o seu grande “crime” afinal era e sempre foi a sua própria existência. Em resumo: Joseph K. já nasceu culpado de um crime a ser punido com a pena capital.
De modo análogo, a imprensa, boa parte da opinião pública e pelo menos um conselho regional de biologia tem o mesmo posicionamento sobre a coleta: sua simples concepção é errada e meritória de punição exemplar. Mesmo sem jamais ter ido às verdadeiras fontes, mesmo sem sequer ouvir as duas partes; mesmo sem admitir qualquer tipo de defesa. Que isso não se repita mais com as coletas científicas no Brasil. Que nós não deixemos o obscurantismo transformar essa atividade prevista e regulada por lei e praticada por amantes e filósofos do mundo natural num crime banal, tornando-a equivalente ao desmatamento, especulação imobiliária e tráfico de animais silvestres, esses sim, os grandes vilões da fauna brasileira.

Belém, 13 de julho de 2010