quinta-feira, 29 de maio de 2008

LUCAS E O PÉ DE FEIJÃO

Meu neto colheu o seu feijão. Está todo contente. Ele tem quatro anos. Um dia, na sua escola, a professora ensinou as crianças a plantarem cada uma sua semente de feijão em algodão úmido. Quando a semente se abriu e a plantinha surgiu, ele a olhava com a mesma interrogação que as crianças olham os passes de mágica. Entusiasmado, replantou-a num pequeno canteiro de flores no quintal. O tempo passou e, ontem, lá estava ele, compenetrado e feliz abrindo as vagenzinhas secas e retirando as novas sementes, saudáveis, brilhantes e bonitas. Separou as poucas que não vingaram, dizendo, em sua inocência: "Estas não cresceram; mas ainda vão crescer". Outras ele usou numa nova semeadura, no mesmo canteiro, antevendo o milagre da terra multiplicá-las por duzentos. A produção apurada deu metade de uma tigelinha dessas usadas prá sobremesa, que ele entregou à vovó: "(como se fala em japonês), você cozinha prá mim?"
Ante as notícias de escassez de alimentos eu vejo brotar a esperança quando um garotinho de quatro anos consegue produzir seu almoço.

terça-feira, 27 de maio de 2008

PRÁ QUEM LEU "GRANDE SERTÃO - VEREDAS"
(leitura imperdível)

ELE

Ele era carne muita e calor bravo
Brasa quente que enfrenta orvalho frio
Na peleja derrubando ente pravo
Atravessa em si mesmo o baldo rio

Grande sertão, veredas, fundo cavo
Vence fugindo sempre de desvio
Permanece de estranho amor escravo
Dor índia que ilaqueia o desafio

Não fosse sua gente tão confusa
Não fosse ele tão cego de conceito
Na certa soltaria a fala oclusa

E invés de a bala abrir para o desfeito
Buscava além da imagem sua musa
Explodindo a paixão dentro do peito.

João Donha – anos 90.
MAIS UM POUCO DE POESIA

ECLESIASTES

Vaidade de vaidades, disse o Eclesiastes.
Que proveito tiras tu, ó trabalhador,
Do trabalho com que sempre te desgastaste
Debaixo do sol, a não ser a tua dor?

O sol nasce todo dia e torna a se por
Uma geração vem, outra geração parte
Por mais que pense não se livra do Criador
Filosofia, religião, ciência e arte.

Na calha do tempo se esvai inveja e amor
Seja puro ou pecador, não ilude a sorte
A tragédia com mais furor atinge o forte.

E por mim, que se dane burro ou pensador
Tudo é vaidade, pois que seja como for
Sábio e insensato encontram a mesma morte.

João Donha – anos 90.
POVO, UM MERO DETALHE

É incrível a falta de auto-crítica das elites brasileiras. Como elas se esforçam, ainda que inconsciente, ou, até, atavicamente, para alijar o povo dos processos legislativos ou decisórios. Não me refiro apenas a elites econômicas. Refiro-me a essas e, também, a lideranças sindicais; a políticos, mesmo egressos das camadas mais pobres; a funcionários públicos e militares; enfim, a qualquer um que tenha poder sobre a população; ou poder maior que a população. O exemplo principal é o próprio processo constituinte: cada vez menos democrático com o passar do tempo. Sim, porque o de 1986 afastou o povo do debate muito mais que o de 1946. E, de forma disfarçada; o que o torna pior do que o abertamente autoritário de 1967. Em 1986, as elites, ao invés de convocarem uma assembleia constituinte que realmente passasse o país a limpo, preferiram dar poderes constituintes a um congresso eleito da mesma forma que sempre: currais eleitorais, trocas de favores, parlamentares que aprovariam o orçamento. Enfim, tudo o que desmotivasse e afastasse o povo do debate sobre leis, na hora de escolher seu candidato. Alem de ilegítima e refém de interesses corporativos, a constituição ficou vulnerável a fraudes (ver: http://paginas.terra.com.br/educacao/adrianobenayon/fraudeac.html). Para completar a ilegitimidade, com medo do retorno dos militares, outorgaram a constituição sem aprovação em referendum popular. Já discuti este assunto exaustivamente na maior praça pública da nossa atualidade, o site de relacionamentos Orkut, na comunidade "Revitalização da Lei no Brasil", tópico "A Constituição é ilegítima".
Aqui, porem, pretendo me referir a acontecimentos mais recentes. Ao esvaziamento do legislativo. Ou, melhor, ao auto-esvaziamento. O povo elege seus deputados e senadores para elaborarem e aperfeiçoarem constantemente as leis que nos dirigem. E o que fazem os senhores senadores e deputados? Delegam cada vez mais poderes legislativos aos juízes do supremo, que não foram eleitos com nenhum voto popular. O legislativo é a caixa de ressonância dos anseios populares. Os interesses da população devem ser ali debatidos até que, por votação, decidam o que e como se transforma em leis. Os senhores juízes que passem daí a julgar conforme essas leis; ou seja, conforme a vontade soberana da população. A decisão da maioria dos legisladores, deveria ser a decisão da maioria da população. Mas, na prática, o que vem acontecendo? A minoria derrotada recorre ao supremo tribunal, e um punhado de homens e mulheres que não representam efetivamente os desejos e anseios da população, serão os autorizados a legislarem. Como todo poder vicia e cega, já podemos ver os juízes se arrogando o direito legislativo, como fez o chefe do supremo no recente episódio do ressuscitamento da cpmf (poucos gostariam de ter aumento de impostos; mas, compete ou não ao povo a decisão?): "por qualquer meio que o congresso recrie a cpmf, será questionada aqui no supremo". Ou dando a senha para que a oposição impeça as obras do pac na justiça; julgando antecipadamente.
Só seremos um povo livre quando retirarmos das mãos de cocheiros espúrios as rédeas de nosso destino.
Deveríamos construir uma democracia direta, onde assuntos como pesquisas com células tronco embrionárias ou criação de impostos, seriam objetos de plebiscito!

quarta-feira, 21 de maio de 2008

DEUS, UM DELÍRIO?

No prefácio do livro “Deus, um delírio”, do Richard Dawkins, ele escreve: “Se este livro funcionar do modo como pretendo, os leitores religiosos que o abrirem serão ateus quando o terminarem”. Desafio tentador. Mas, há um erro na pretensão. É possível ser teísta e não-religioso. Ou, é possível abrir o livro como teísta e religioso, e terminá-lo não-religioso, não obstante, continuar acreditando em Deus. Eu mesmo, abri o livro sendo, de certa forma, ateu; pois, não acredito em nenhum dos deuses, ou das concepções de Deus que por aí existem. Não acredito nem mesmo na ausência de Deus, dos budistas. Nem no Deus de Spinoza. Não acredito que Deus tenha dito a Moisés, Maomé, Lucas ou Mateus, qualquer coisa que não tivesse dito também a mim. Por isso, creio em Deus à minha maneira. À maneira da minha ignorância. Pois, não sei como ele é, nem o que realmente quer, ou o que pretendeu fazendo o mundo, se é que o fez. No entanto, creio o suficiente para me encontrar esgrimindo contra ele, na torre, nos momentos de revolta ou dúvida. Ou para encontrar consolo numa prece, nos momentos de angústia e dor. Como nada sei sobre ele, não acredito que alguém o saiba e possa me ensinar, por mais velhos e sacralizados sejam seus escritos. Também não aconselho a ninguém crer à minha maneira: somos iguais, cada um erre por si. Ou deslize em seu próprio delírio, pra usar a visão do autor. Na verdade, o que Dawkins conseguiu combater muito bem não foi a idéia de Deus; foi a religião. Principalmente a religião organizada, que é o cadáver da religião. E foi um bom e útil combate; por isso recomendo a leitura do livro. De minha parte, posso assegurar que li e fiquei convencido de que Deus existe, mas está muito mal representado na Terra.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

A CONSTITUIÇÃO E A MACONHA

E foi Deus quem fez nossa constituição? Porque, por certo, o povo é que não foi, alijado que estava do debate direcionado apenas para a formação de um congresso com poderes de influir na distribuição do orçamento, na construção de asfaltos e pracinhas, mas cujos membros iriam cunhar as tábuas da lei maior. Participei de um circo de lonas que alguém armou numa praça para reunir cidadãos e motivá-los à discussão do que se deveria colocar como lei: se havia meia dúzia de gente era muita. Os demais, estavam ocupados em oferecer seus votos aos candidatos que nem pensavam nas leis necessárias, mas, por certo, tinham telhas para os barracos ou cabides vagos de empregos para distribuir. Uma vez eleitos e constituídos, ficaram, os constituintes, reféns da sociedade organizada - eufemismo para corporações -, enquanto que a maioria de nós, indivíduos que têm afazeres e integram a sociedade desorganizada, ficamos órfãos de leis e de liberdade. E, se vi acontecer isto comigo e meus conhecidos, imagine o que não houve com uma plantinha sem consciência, que não sabe nem se existe e prá que existe, mas se vê ameaçada de extinção pela lei dos homens. Esta plantinha sim, com certeza, criada por Deus, que talvez a quisesse como refrigério às vítimas de doenças e tratamentos agressivos, ou para que todos com ela fizessem cordas; mas que acabaram por amarrar-se em proibições e transgressões, num mercado desesperado e violento. Quanto mais proibições, mais transgressões a exigirem mais repressão; e, assim, ganham os que mercadejam a transgressão, mas garante-se o emprego de quem vive da repressão. E a constituição, com mais cláusulas pétreas que as pedras de Hamurabi ou das Doze Tábuas - que eram todas pétreas -, sob o temor de um retorno que impediu até sua submissão a um referendum popular que lhe desse a legitimidade perdida no processo elitista de elaboração, continua, petreamente, sem poder ser questionada pela população, e, portanto, sem poder ser alterada pelo cidadão. Pelo menos foi a desculpa que um integrante da corporação mais beneficiada pela carta deu para proibir a marcha da plantinha: "não podemos cair na anarquia; essa discussão é para ocorrer no congresso, não nas ruas". Estranha democracia, onde a lei não é feita pelo povo e para o povo, que não pode discutí-la nas ruas, mas por quem recebe, sem discussão - ou sob restrições do que pode ou não ser discutido -, uma procuração assinada pelo digitar de alguns números numa caixinha eletrônica. Numa democracia de verdade, os constituintes deveriam receber uma procuração para elaborar as leis, não para outorgá-las; a aprovação final deveria ser feita por quem de direito, através de um referendum.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

O MUNDO DÁ VOLTAS

O mundo dá voltas, sabem os físicos há muito tempo. E aprendem os que nem se importam com a matemática. Um órgão da ONU, certamente composto por pessoas que lá estão garantindo altos salários, deu chute em cachorro morto, apressando-se em desgrudar sua imagem do Ronaldinho logo após o escândalo, ainda fumegante, dos travestis. Isto, depois que o moço, a pedido do próprio secretário-geral participou de inúmeras campanhas humanitárias daquele órgão. São voltas do mundo. Ronaldo também, se já não chutou cachorros mortos, os chutou bem agonizantes. Num entrevero, preteriu Cicarelli em favor de um cára nada travestido que lhe disputava a atenção, ostentando um "enfeite" (lembram do Soylent Green?) que era desafeto dela. Logo depois, quando o presidente Lula, acossado por inúmeros escândalos e cpi's, disputando uma desgastante reeleição, fazendo a rotineira relações públicas do presidente em vésperas de copa de mundo, resolveu externar uma brincadeirinha inocente que grassava em todo o país a respeito do peso do Ronaldo, levou em troca uma agressiva e arrogante alusão àquela reportagem apócrifa sobre a cachaça. O próprio interlocutor do presidente na ocasião, o Parreira, gostou de dar seus chutinhos. E, logo num presidente democrático como o Lula. Admiro a coragem de quem chuta pitbuls ou rotivailes em pleno vigor, como o Saldanha fez com o Médici. O presidente mais temido e incensado da nossa história; que autorizava prisões arbitrárias, massacres em câmaras de tortura, e dava-se ao luxo de dizer que era acidente de trabalho quando um torturado morria nas garras de um torturador. Pois bem, esse Médici, acostumado a ver seus desejos atendidos como lei, e os apresentadores de televisão apresentarem seu retrato colorido como luxo, manifestou o desejo de que um jogador, certamente afilhado seu, integrasse a seleção de 70, sob direção do João Saldanha. Este, comunista de quatro costados, respondeu a frase famosa: "O presidente escala o ministério; eu escalo a seleção". Foi demitido no outro dia, com as honras da presença policial em pleno treino. Daí, o Parreira, quando soube que o Lula, falando não como presidente e sim como torcedor, sugeriu um craque, repetiu garboso, sentindo-se um herói, a frase do Saldanha, sem dar o devido crédito da autoria. E os jornalistas presentes, na certa jovens que não conheciam o passado, regalaram-se com a falácia do técnico. Bem disse o Marx, que os fatos históricos costumam acontecer duas vezes: na primeira como tragédia, na segunda como comédia. Logo com Lula, que deixa o Morales mijar no seu sapato, o Chavez desmanchar seu cabelo como se faz com meninos, o juiz dizer que a oposição pode mandar processos que serão bem recebidos no tribunal, o militar criticar políticas indígenas, e continua fazendo humildemente seu trabalhinho econômico, que é só o que a constituição corporativista do país lhe permite fazer. O mundo dá voltas. Quem chuta cachorro morto, encontra seu fila pela frente. Um dia a unicef vai encontrar o dela.